Marina Abud
Uma análise psicanalítica do filme Beleza Oculta
Atualizado: 3 de mar. de 2021
Definitivamente, “Beleza Oculta” é um filme emocionante que toca em questões sensíveis do viver humano. Acompanhamos a história de Howard, um homem cheio de vitalidade e criatividade, que adoece psiquicamente após viver a morte de sua filha. Como telespectadores, testemunhamos a trajetória tortuosa de seu luto – incialmente, uma dor intensa, vivida de forma solitária, que aos poucos pôde ser elaborada, possibilitando o reencontro com o sentido de se estar vivo.
Apesar da narrativa focar em um processo muito pessoal do personagem, podemos refletir que a elaboração de lutos é algo que fazemos o tempo todo: seja pela perda de uma pessoa querida, de um trabalho, de um sonho, de uma expectativa idealizada... estamos o tempo todo perdendo, e encontrando maneiras, às vezes mais ou menos saudáveis, de lidar com essas perdas. É nesse sentido que a psicanálise pode contribuir a partir de suas compreensões de como se dão os processos de elaboração de luto, e por isso, proponho aqui uma análise que dialogue esse campo teórico com a história apresentada no filme.
A psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross escreveu em 1969 o clássico “Sobre a morte e o morrer”, a partir de uma extensa experiência com pacientes que possuíam doenças terminais. Dentre outras contribuições, a autora fala sobre 5 estágios do luto, que podemos claramente observar no filme.
O primeiro é a negação, um mecanismo de defesa que se constitui por negar a dor, evitar entrar em contato com a experiência emocional. No filme, Howard encontra-se inicialmente nesse estado – está apático, vivendo no piloto automático, sem poder falar sobre o que aconteceu, negando inclusive as primeiras aparições dos personagens Amor, Tempo e Morte. O segundo é a raiva, que aparece quando Howard começa a acreditar e a enfrentar Amor, Tempo e Morte, deixando transparecer todo o ódio e sentimento de injustiça que tem pela perda de sua filha. O terceiro é a barganha, ou seja, a tentativa de fazer uma negociação que evite a perda, algo mais implícito no filme, mas que aparece quando Howard conta a Madeline que tentou fazer um acordo com a Morte para morrer no lugar de sua filha.
O quarto é depressão, no qual pode-se de fato entrar em contato com a dor, aceitando a realidade externa, emergindo sentimentos de tristeza e pesar. E isso acontece quando Howard de fato aceita que a morte ocorreu, simbolizada pelo documento que ele assina atestando isso. A partir de então, consegue procurar Madeline, e com ela, se permite a falar o nome da filha (antes indizível) e sua causa de morte – permitindo a externalização de toda sua dor, em um momento de muita emoção e choro intenso. Por fim, o quinto estágio é o de aceitação, no qual pode-se entender o que ocorreu, mas também, reencontrar o sentido de se estar vivo. É isso que vemos ao final do filme, quando Howard retoma seu relacionamento com Madeline, aparece sereno, e olha para Amor, Tempo e Morte com gratidão.
Outra questão importante que podemos pensar aqui tem a ver com o título da obra: “Beleza Oculta”. No filme, a personagem Madeline explica em um diálogo com Howard que, após sua aceitação do luto, ela sentiu uma profunda conexão com tudo a sua volta. Podemos, então, entrar em contato com uma faceta importante no processo de elaboração do luto e no encontro do sentido de se estar vivo: os vínculos. Acredito que os laços que estabelecemos com os outros a nossa volta é o que permite nos sentirmos conectados de forma real com o mundo, em uma terapia psicanalítica, é através de um vínculo com o analista, que o paciente pode reestabelecer-se de um luto difícil e reconstruir seus relacionamentos.
A chamada escola inglesa da psicanálise, é composta por pós-freudianos que propuseram uma psicanálise mais atenta ao desenvolvimento emocional primitivo e ao papel das relações de objeto (leia-se, com os outros a nossa volta) na constituição psíquica do sujeito. Ou seja, diversos autores aqui vão pensar na fundamental importância da presença de um outro que possa olhar, cuidar, suprir nossas necessidades.
D. Winnicott, traz o conceito de uma “mãe suficientemente boa”, isto é, alguém que possa ocupar-se do bebê de forma satisfatória. Mas isso não se restringe só a infância – continuamos precisando do outro, inclusive, esse próprio autor admite que nunca chegamos a um estado de completa independência. E em um processo de luto, necessitamos ainda mais desses vínculos para nos reconstituir psiquicamente.
No filme, Howard pôde contar com esses vínculos. E quanto mais os amigos, a esposa, Amor, Tempo e Morte, se ocupavam e interagiam com ele, Howard pôde deixar seu estado de solidão e apatia para trás. Ele passou a frequentar o grupo terapêutico, interagir novamente com Madeline, expressar seus sentimentos reprimidos por Amor, Tempo e Morte, lidar com as responsabilidades de seu trabalho. E tudo isso permitiu-lhe atravessar os estágios do luto, encontrando uma forma de viver mais conectado ao mundo, contemplando a Beleza Oculta.